sábado, 28 de setembro de 2013

NORA E OS VESTIDOS - Conto de Narciso de Andrade

     
Conto de Narciso de Andrade publicado na Mirante Especial Narciso de Andrade de 1997 e republicado na Mirante Especial  Narciso de Andrade de 2011.


NORA E OS VESTIDOS


        Hoje vai chover. Nora passou de vestido azul. Aquele azul que não é bem azul, azul como as nuvens, nuvens rochosas, compactas, densas. E um vento tênue, tátil, fazendo figurações lentas, ondulações de pregas que se desfazem, ânsia de libertação, vibração de músculos em movimentos nervosos.
         Um pouco fria a manhã. Maçã esplêndida ilumina o carrinho do verdureiro.
A cauda do cavalo oscila vagarosa. Repicam palavras leves em saudações matinais de bom-dia, como passou a noite, sorrisos frescos de faces femininas que desabrocham em cores naturais. Pálidas. Um tanto murchas, mas ainda serenas. Beijo em rosto sem pintura, as formas através de chitas, verduras úmidas, pão em cima do muro e o braço que se eleva, seios, o peso da carne através do portão.
          Ninguém sabe que hoje vai chover, ninguém conhece a estranha, a misteriosa relação existente  entre os vestidos de Nora e os acontecimentos.
          Há quem entenda os olhos de Nora e insista em afirmar que eles são verdes. Morena de olhos verdes – eis todo um roteiro de mulher. Mas precisaria dizer mais: a constante rebeldia dos cabelos, ora negros ora castanhos, crepusculares ou matutinos, em tonalidades determinadas pela cor das horas. Como agora, quando ela passou e eles revoavam quase louros. Cantantes. Metálicos. Luminosos. Seria necessário também observá-la em atitude estática. Por exemplo, quando espera o bonde. E que fazer senão reportar-se a pássaro no exato momento que antecede o voo? A ave pousada, nunca inteiramente presa à terra, que nela comunica-se com espaços e distâncias.
          E mais a dizer? O poder de equilíbrio e surpresa da matéria palpitando em inteira perfeição. Dizer com isto que há calma de lago em certo trecho de seu corpo e noutros a voragem de precipícios se insinua por uma curva inesperada ou o recorte de um ângulo imprevisto.
         Apelar para todo um repositório de linhas e planos de esquiva geometria para descrever a ardente geografia das formas que se oferecem, verdades supostas, sem entrega. Que no fundo é o remanso de água parada forçando o contorno das margens. Mesmo assim, de Nora surgiria apenas a camada que se liga a elementos visuais e sensitivos. Aquilo que se expõe a olhos contentes com superfície, detalhe de uma veia no braço, zonas de luz e sombras, jeito, maneiras, gestos.
              Presença, fugas. Seus movimentos determinados a temperatura ambiente, a magia das estações de repente confundidas – e a primavera avançando os meridianos de inverno. O verão na dependência de uma palavra ou preso ao rito majestoso de um sorriso.
              E mais querendo fixar seria repetir o mar que já tanto se repete. Nos seus ciclos normais de píncaro e planície, tempos distintos e convergentes, cujos limites e fronteiras constituem  território inatingível . Repetir, portanto, sem confirmar. Restando quase integra a dúvida. Desta surgindo  a mulher de quem se ouve nas águas  e nos ventos o nome repetido: Nora, Nora. Desse espaço de dúvida (ou mistério) participam os seus vestidos. Por isso eu sei que hoje vai chover. Nora  passou de vestido azul nublado.  Os elementos em confabulação  preparam-se para  gerar a chuva. Com a chuva virão relâmpagos, estes trarão o medo. Janelas que  batem, portas rangendo. Fechadas todas as saídas. Casas voltadas para dentro, sufocantes. Senhoras cruzam agulhas velozmente, tricô, bordados – meu Deus, a chuva não passa, vai inundar o quintal, invadir o porão! – a agulha sobe e desce , trança e destrança, fixa, prende, conduz, constrói.  Unir o fio rompido, enfiar a linha no buraco da agulha por onde é mais fácil passar um camelo. A chuva demanda reflexão. Verbo esquivo, andar pouco, mínimo de movimentos com o corpo. O pensamento suportando todo o peso específico da chuva. Introspecção.
         Mais as crianças saltarão de alegria, torso nu, pés no chão, pictóricas, soberbas. Pedaços vivos em destaque na paisagem onde se relacionam em luminosidade e vibração com as unidades vegetais.
          Depois virá o tempo bom. Dia sem chuva, noite com lua, diálogo de grilos. O canário vibrátil, histriônico, canta e representa na gaiola. Mãos translúcidas rolando em abismos de sons que se buscam e se repelem – escalas ao piano. Sonoridade assimilável da música do cotidiano, alva substância das horas comuns. Os simples combinando pescarias. Maresia, álcool, estrelas, mar alto, mistério, lagrimas em fugas nos olhos dos rudes. Sempre voltam bêbados e puros.
        Os inúmeros arranjos domésticos dão a sintonia geral e o relógio liga os minutos, tecendo, tecendo. Ritmo de continuação, do que veio para o que vai, sem sobressalto. Todos enfim aceitando o dia porque o tempo é bom e a vida curta.  Mas aí, então, Nora estará de branco.
Aquele vestido que a liberta da marcação do tempo e indefine o conceito de idade. Poderíamos chamá-la  doce menina ou grave senhora. Aglutinar no instante em que ela passa todos os séculos que antecederam esse indefinível momento. E proclamar que o dia é belo porque Nora está de branco. Nem há qualquer outra razão para as flores explodirem com tanto prazer de cores e perfumes. É Nora, é Nora de branco quem propicia o evolar do pólen das rosas e estabelece o ciclo de fertilidade que ilumina a face dos jardins.
Para o amor, ouvi dizer, Nora prefere o vermelho. E seus olhos ficam turvos. E sempre ocorre alguma catástrofe nessas ocasiões. Pronunciamento de grandes homens gerando o desentendimento. Naufrágios. O corpo do afogado dando á praia sete dias depois do procurar-se no jornal. A mãe, quebradas todas as resistências, precipitando-se no pântano pegajoso da loucura. Por outro lado, há quem afirme coisa diversa. Que Nora se põe de verde para o amor, uma aura imponderável a envolve e gotas orvalho brotam de seus membros. Paz.  Serenidade.  Doçura. Amanhece. Asas roçam a superfície da água, a gaivota adeja, seu corpo claro confina com o horizonte. O barco passa lentamente transportando silêncio no bojo das velas. Volúpia. Langor. O tecido das espumas recobre a proa: véu diáfano de virgem enlanguescida. O jovem mergulha em alto mar e volta com uma estrela na mão, rilhando os dentes. Segredo de amar sem desfazer-se.
               E tudo seria verde. Verde campo, verde oceano, verde do vestido verde de Nora em tempo de amor. A certeza integral, contudo, permanecendo. Seus vestidos é que dirigem, no âmago, a mecânica dos acontecimentos. Deles parte a chispa de fogo da vida e da morte.
                É possível saber-se o que vai suceder se ela estiver de amarelo, inclusive. E o amarelo é antes de tudo a fatigante intenção. As ausências se preenchem em amarelo. Gato no tapete, ronronando. Tédio, melancolia. Pergunta-se porque e o menino responde: está tudo tão amarelo. O amarelo é isto – uma irritante resposta de menino, oca por dentro, resvaladiça por fora. A gente escorrega e custa a refazer o equilíbrio. Estabelece-se o hiato do absurdo.
                 Este mesmo amarelo assim tão vago e enervante passa a palpitar-se, em função de um vestido de Nora, anuncia o amadurecimento dos frutos.
                Nora passou de vestido azul: hoje vai chover. É preciso recolher a roupa posta a secar. Munir-se de preocupação e não sair afoitamente só porque o sol existe e o dia é lindo. Necessário se torna dilacerar a epiderme do cotidiano e atingir o cerne da verdade. Nesta região respiramos livremente. Não há caminhos, nossos passos derivam para todos os lados e não deixam sinal no solo. Outros virão depois para inaugurar novos roteiros.

               Até que um dia Nora retire do armário aquele vestido preto e tudo termine sem explicação.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A Mirante (Revista Literária Santista Trimestral) teve muitos aniversários e muitos poetas, escritores e desenhistas, consagrados ou não, publicados em suas páginas. Em outubro de 2012 a revista chegou ao n° 79 completando 30 anos, recebendo uma edição especial, com retrospectiva histórica, com lançamento, em de novembro de 2012, na Cafeteria Ao Café , em Santos, e  no mês seguinte,  o evento  foi na Bel Cafeteria em São Vicente.

A Mirante sempre promoveu lançamentos em cafeterias, bibliotecas, livrarias, bares, pizzarias, ou seja, procurando divulgar  a  poesia e compartilharmos uma noite agradável.

Em abril de 2013 foi postada a edição da Mirante 30 anos completa neste Blog permitindo assim que se conheça a revista. E em setembro já nos aguarda o lançamento da Mirante número 82, onde um dos destaques será uma entrevista inédita  com o poeta Narciso de Andrade, além de outras atrações literárias. Aguardem.

_______________________________________________________________  OS EDITORES

Mirante Especial Narciso de Andrade


Capa da Mirante n° 40, onde completou 20 anos e mais Encarte Especial do Picaré (outubro de 2002)


terça-feira, 2 de julho de 2013

Centro da Mirante n° 76, em homenagem a Lua


Mirante n° 24 em homenagem a Lua


“Possam os Deuses
conceder-me uma vida,que
como a lua, se renova
a cada mês”


Desde as épocas mais antigas, a lua sempre exerceu um enorme fascínio às criaturas humanas. Era ela quem guardava os segredos da procriação, a deusa que controlava os poderes destrutivos da natureza. O símbolo enfim da fertilidade da terra e das mulheres.
Ao passar do tempo a lua torna-se inspiradora de poetas, místicos, musa do amor. Através das lendas e tradições populares. É a lua quem acende a magia dos encontros amorosos, a loucura das paixões e o terror das sombras noturnas que  apavoram as pessoas.


A lua na mitologia

Na mitologia egípcia, a lua é representada por Ísis, irmã e esposa do deus Osíris (sol), simbolizava o tipo de esposa e mãe dedicadas. Representavam-na com traços femininos, cornos de vaca (símbolos das fases da lua) e tendo a seus pés o globo terrestre.
Para os gregos, a lua é personificada por Selene, irmã de Hélios (o sol) e a aurora. Sua representação é de uma bela jovem que percorre o céu à noite no seu carro de prata puxado por dois cavalos brancos. Além de Selene, encontramos para a lua, na mitologia grega, outras deusas, tais como Ártemis e Hécate (lua nova).
Na mitologia romana a lua era a maior divindade do paganismo depois do sol. Era traduzida por Diana e Juno. Já na mitologia hindu, o deus Shiva é uma divindade de traços lunares e sua esposa, Parvati, está ligada à lua nova.
A lua cheia é dedicada a Kama (um deus masculino), o Eros hindu, associado ao amor, ao prazer, paixões e desejos.

Outras mitologias

Para os babilônios, Sin era o nome do deus-lua. Os mesopotânios tinham a lua como um deus, não uma deusa. Na mitologia fenícia, Astart, que simbolizava a fertilidade e a maternidade.
Na mitologia indígena brasileira a lua é Jaci ou la-ci, mãe dos frutos. Igual às outras civilizações, é irmã e esposa do sol.
Em cada fase merecia uma homenagem diferente. Jaci Omunhã é a lua nova e Jaci Icava, lua cheia. Fazem parte de sua existência: o saci-pererê, o boi-tatá, o urutau e o curupira, criaturas da noite, que brincam e assustam quem ousar a aventura de andar pela mata escura.


___________________________________________________________________  Valdir Alvarenga

domingo, 30 de junho de 2013

CAPA DA MIRANTE N° 78 (JULHO, AGOSTO E SETEMBRO DE 2012)


coluna: OUVI CONTAR (Mirante n°78)

Que o escritor Nelson Rodrigues era fanático pelo Fluminense, time carioca. Nos anos 60, numa mesa redonda esportiva, da TV Globo, onde os integrantes da mesa discutiam com paixão de torcedor, Nelson Rodrigues, fluminense fanático, insistiu em afirmar que o juiz Airton Vieira de Moraes estava certo em não assinalar um pênalti contra o time tricolor. O apresentador  Luiz Mendes, pediu para que o vídeo tape da partida fosse rodado. A imagem comprovava que o pênalti havia sido cometido contra o    Fluminense. A resposta de Nelson entrou para a história:  “Se o vídeo diz que foi pênalti, pior para o videoteipe. O videoteipe é burro.”

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Centro da Mirante 78


NIKA TURBINA (texto publicado na Mirante n° 78)

NIKA TURBINA
A HISTÓRIA DE UM VOO


Nika      Georgievna      Turbina, nascida  em  Yalta, na Crimeia (hoje   Ucrânia),    em   17    de dezembro   de  1.974,  neta  do poeta    e     prosador    Anatoly Nikanorkin,  foi uma espécie de criança  prodígio,  e segundo  a lenda  familiar,  compôs  versos aos   três  anos,   mesmo   sem saber  escrever   e   recitava-os para  sua   mãe.  E  através  do escritor     Julian      Semyonov,    o    qual   ao    ler   os    versos,   ligou     para     o     editor      de Komsomolskaya  Pravda,  afir- mando    que    descobrira   um verdadeiro     poeta    russo    e  Nika    teve    alguns     poemas publicados.
Em consequência, no ano seguinte, na casa de Boris Pasternak (o autor de Doutor Jivago), ela foi apresentada  ao poeta russo Yevgenij Yevutschenko, o qual não resistindo ao encanto daquela pequena criatura lendo seus poemas, tratou  de divulgá-los aos seus conhecidos. O poeta fez também o prefácio do primeiro livro de Nika Turbina, publicado em 1.984, denominado Primeiro Objeto. Uma gravação de suas recitações vendeu mais de 30 mil cópias. Nessa época, aos oitos anos, declarou: "A poesia não tem idade, e escrevo para todas as pessoas". 
Em 1.985, ano em que  Mikail Gorbachov então presidente introduziu  a Perestroika, uma das políticas na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Nika recebeu em Veneza o Leão de Ouro pelo Festival da Poesia, tornando-se a segunda poetisa russa a ganhar o prêmio. A primeira fora a consagrada Anna Akhmatova.
Para coroar todo este precoce êxito, aos doze anos, em 1.986, fez visita aos Estados Unidos, tornando seu nome conhecido além da fronteira de seu país.
O segundo livro de Nika chamado na tradução “Para cima, para baixo, passos, passos...” apareceu em 1.991, ao mesmo tempo em que seus textos iam sendo traduzidos para outros países. Em Moscou, Nika Turbina participou de cursos no Instituto de Cinematografia e do Instituto de Cultura, atuando em alguns filmes.
Ao ingressar na adolescência, Nika caiu em grave crise depressiva. Entrando em conflito com sua mãe, que havia casado novamente e tivera uma filha, a poeta começou a beber vodka  e sua poesia definhou. Em 1.990, aceitou o convite de casamento feito por um médico suíço, de origem italiana, de 76 anos, indo morar com ele na Suíça. O casamento não durou meio ano e Nika regressou a Moscou.
No ano de 1.997 tentou o suicídio, jogando-se do quinto andar de um edifício, sofrendo ferimentos graves, os quais a obrigaram a muitas operações cirúrgicas. No entanto, em 11 de maio de 2.002, aos vinte e sete anos, sua outra tentativa deu certo. Nika atirou-se do quarto andar da casa onde morava. Teve seu corpo cremado e sua professora de Arte Dramática, conseguiu que suas cinzas fossem depositadas no cemitério mais conceituado de Moscou. O jornal soviético, Isvetzia, publicou uma pequena nota de falecimento.


D0LL

Eu sou como uma boneca quebrada
No meu peito esqueceram
De colocar um coração
E o deixaram sozinho
Em um cantinho obscuro
Eu sou como uma boneca quebrada
Uma vez ouvi pela manhã
Um sonho murmurar calmamente para mim
“Sonhe, minha querida, sonhe por muito tempo
Os anos irão passar
E quando você acordar
As pessoas irão querer
Tomá-las em seus braços novamente
Envolver você e em um simples embalo
O seu coração recomeçara a bater...”
Mas é muito assustador ter que esperar


UM PÁSSARO MADRUGADOR

Tenha piedade, deixe-me partir
Não amarre as minhas asas feridas
Eu não voo mais
Minha voz partir-se com a dor
Minha voz tornou-se uma ferida
Eu não choro mais.
Ajude-me, espere!
Outono.
Os pássaros estão voando para o sul
Apenas o meu coração foi oprimido pelo medo
Solidão – um amigo da morte.

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TEXTO -  VALDIR ALVARENGA

POEMAS -  TRADUÇÃO DO INGLÊS POR LUCIANA ALMEIDA

segunda-feira, 8 de abril de 2013

MIRANTE A HISTÓRIA (texto publicado na Mirante 30 anos n° 79)



MIRANTE  -  TRÊS  DÉCADAS  DE  INDEPENDÊNCIA
1.982- 2.012


O fim do Grupo Picaré (escritores santistas dispostos a romper com o academicismo reinante, no início dos anos 80, levando a poesia ao contato direto com o público) e de sua revista, não significou o cessar das atividades literárias. Ao contrário, ainda pertencendo ao grupo, eu e Antonio Canuto, poetas líricos assumidos, sentíamos necessidade de criar uma revista diferente e daí nasceu Mirante.  Com uma linha editorial totalmente caótica, mas ordenada, não tínhamos nem preocupação com linha editorial a seguir. De forma experimental, feita no formato de folhas de sulfite A4, a intenção primordial era a de divulgar a literatura, fosse ela  regional ou universal.
E em seu primeiro número (na verdade o número zero), Mirante nem posava de revista, mas sim como um módulo de divulgação da poesia lírica. Queríamos - ingênuos, mas autênticos e espontâneos – atingir o sentimento das pessoas e na capa a versão de música de John Lennon tentava traduzir esta intenção, ao mesmo tempo em que anunciávamos o retorno do lirismo. Isto num período em que a repressão militar impunha sua tirania e censura a todo tipo de manifestação artística.
E com espírito provocativo, Mirante dizia no início de seu editorial:
“Lirismo? Epa, o que é isso? Alguém torceu o nariz. Até parece coisa de quem não tem o que fazer. Vai liricar, vagabundo? Quac! Em plena recessão!!! Pois é, prezado bicho, com a inflação  correndo mais que o carro do Piquet, com toda essa politicagem jorrando na televisão dos consumistas esquecidos de que são feitos de carne, osso, coração e alma (isso existe?), eis nós, seres petulantes, querendo espalhar um pouco de lirismo nesse falatório, não somente político mas em todos os níveis. Estamos conscientes  de nossa santa ingenuidade porém não somos tolos. Ao contrário, estamos vivos e participantes na vida, no que ela tem de mais belo, sensível  e puro e que não se encontra em nenhum  shopping, distantes de toda  a ideologia maniqueísta e castradora. Sendo  assim, que pulsem com mais energias os corações...”
E em suas páginas a Mirante zero trazia o lirismo poético de Cecília Meireles, Cassiano Ricardo e do poeta português José Gomes Ferreira. Outro destaque foi a página Seção – Abertura das Gavetas Reprimidas. Brincando com a chamada “abertura política” (nome que se deu ao processo de abrandamento da ditadura militar, processo esse iniciado em 1.974 e terminado em 1.985), a revista abria espaço para os inéditos ou iniciantes. O que acontece até hoje. No entanto nem só de lirismo era feita a revista. Abria espaço para outras artes como fotografia, ensaios literários e divulgação de eventos. Tentava de certa forma suprir o vazio deixado pela revista do grupo Picaré.
A edição seguinte, a de número um, já se incorporando como um veículo literário, anunciava-se como o novo rebento da literatura. E para demonstrar que não estávamos de brincadeira, Mirante publicou uma entrevista com Roldão Mendes Rosa, então professor da Faculdade de Jornalismo daUNISANTOS e crítico literário do jornal A Tribuna. Fernando Pessoa, Cruz e Souza e Torquato Neto eram divulgados além da reprodução dos primeiros e excelentes trabalhos de Araken Alcântara, fotógrafo santista, então praticamente iniciante. A revista prestou homenagem a Esmeraldo Tarquínio, político santista falecido no mesmo ano em que Mirante foi criada. E de quem me orgulho de ter desfrutado amizade.
Em sua edição de número dois, o formato da Mirante muda, torna-se menor para facilitar seu manuseio e apregoava um voo poético. Criada ao sabor do acaso e das circunstâncias, a revista em seu início contou com colaborações de pessoas fora do meio literário. Como no caso da professora Irene Gimenez (por onde andará?), na época professora de desenho da escola municipal Barão de Rio Branco, onde trabalhei como escriturário, que fez o desenho da capa da edição de número dois. Enfim,  aos poucos os primeiros colaboradores foram surgindo e em sua maioria eram amizades criativas e talentosas. Eis alguns nomes que deram suporte a esse período da revista: Sérgio Fabris, artista plástico, atualmente morando em São Paulo, onde mantém um ateliê na Vila Madalena. DaCosta, na época assinando como Osvaldo, artista plástico. Roberto Terpilauskas, desenhista de estilo refinado, mas que apreciava a simplicidade criativa da Mirante. Jô Blanco, Serí, Inês Moretti, Rubens Prata, Argemiro, Angel Caramez.
Mirante absorveu em suas páginas todos os poetas que foram do Picaré: Alex Sakai, Denise Gomes Gonsalves,  Edilza de Souza Fernandes,  Fausto José, Inês Bari, José Cândido, Orleyd Faia, Rafael Marques Ferreira, Sidney Sanctus, Vieira Vivo e lógico, até o papa do grupo, Raul Christiano Sanchez. A partir de 1.997 até 2.007, a revista foi editada em parceria com Cláudia Brino, na época minha esposa. Com nossa separação, Mirante voltou às minhas mãos de forma integral. E aconteceu  nela uma transformação radical:  mais páginas, tornou-se mais encorpada, colaboradores permanentes surgiram, entre eles André Azenha, Luciana Almeida, Carlos Gama, Igor Villa, Marcelo Rayel, entre outros. E um fato extremamente significativo: passou a contar com dois subeditores: Sidney Sanctus, responsável pela revisão dos textos e Palavras ao Leitor e Irene Estrela Bulhões, minha atual esposa, responsável pela diagramação e ilustrações, que deu à revista um visual mais elaborado e criativo.
Como é missão pra lá de impossível falar de cada uma das setenta e oito edições da Mirante neste pequeno espaço, só nos resta acrescentar que desde seu início até agora, ela sempre se caracterizou pela simplicidade,  com um  caráter mutante, privilegiando personagens olvidados pela mídia e dando espaço aos inéditos. E nesta edição de número 79, totalmente atípica, procuramos através da republicação de textos desde seu início, com nova roupagem, transmitir uma pequena pincelada do muito que já foi editado nestes trinta anos de práxis poética. 

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CAPA DA MIRANTE 30 ANOS


Narciso de Andrade na contracapa da Mirante 30 anos


ilustração de Osvaldo (Da Costa) - publicado na Mirante n° 6, e republicado na Mirante n° 79 - Retrospectiva 30 anos


Poema de Marcella Santos e poema de Benilson Toniolo


PENÚRIA

 

Ando com uma vontade

de espalhar-me no ar
em milhões de moléculas

pulverizar-me na atmosfera,
neutralizar-me com o vento,
fazer as pazes com o mundo.

A concentração de mim
que há em mim
anda a assolar-me,
adoecer-me.

Ando travando batalhas
comigo mesma.
Quando ganho, perco.

Morro por viver
E quando sobrevivo,
mato-me.

 



POEMA DE MARCELLA SANTOS / SÃO VICENTE
Mirante n° 73  – ano 2011
Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva – página n° 82

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BANQUETE

A palavra está servida!
Sentem-se todos à mesa,
Senhores poetas vivos
E mortos –se assim quiserem.
Mordam desta tenra carne,
Avancem, gris cavaleiros,
Sobre seus nervos e ossos,
Sorvam com sofreguidão
A cor chumbo do tutano
Na palavra oferecida.
Mas cuidado! Eis que a caça
Em alguns pontos está crua,
Deve ser melhor assada
Antes de levada à boca,
Pois se mal interpretada
(Ou melhor, mal deglutida),
Eis que ganha nova vida
Contra nós se manifesta
E  seremos nós, agora,
Pela palavra atacados.
E ela nos devorará
A cada um, sem clemência,
Sorvendo nossos neurônios,
Sugando nossas cabeças,
E oferecendo ao futuro
Nossa língua ultrapassada,
Nossos lábios indigestos,
Nossos rostos abismados,
Que nunca disseram nada.
Somos devorados vivos
Por nossa própria impotência.
Pronto! Eis que vence a palavra!
Jazemos todos ao chão
Sob, a mesa, só resíduos
Dos poetas que não fomos.
A todos nós resta apenas
Recolher nossos pedaços,
Contar os vivos e os mortos,
Maldizer os desertores
Que abandonaram a luta,
E recomeçar esta caça
Da  carne-bicho-palavra
Para matarmos a fome
Que a nós liberta -e apavora.





POEMA DE BENILSON TONIOLO / CAMPOS DO JORDÃO
Mirante n° 72 – ano 2011
Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva – página n° 81


Prosa Poética de Andréia Cunha


ANONIMATO

 

                 Anônimo  na vida e da vida. “Boa tarde, Boa Tarde”

Naquele dia seus olhos marejaram. Há muito não se sentia participante do mundo. Na condição de olhares alheios, era um invisível.

               Alguém o enxergara! E nem precisou mendigar dessa vez! Aquele sorriso angelical inundou seu dia de luz como se o sol pedisse licença para as nuvens  e não o impedissem de brilhar. Os amigos de praça também   responderam em longo comprimento de voz: taaaaaaaaaaaaaaaaarrrde”

                 Toda sua vida valeu no mundo alí.

                 Adentrou a sala na qual estavam os colegas de trabalho. Cumprimentou-os. Entretidos em seus casulos, a maioria não respondeu e, os que se dignaram, falaram entre os dentes um “tarde”  árido.

                 Cada qual em sua função fixava os olhos na atividade que deveriam exercer até o fim do dia. Tontos nos turnos. Turvos dos olhos e da alma.

Ao se uniformizar com a camiseta não se tornava. Deixava de ser o que era. Servia sorvetes mistos de um preço barato. Na    época de verão , era tal qual como a máquina que solidificava o creme  e era esparramado na casquinha. Não o percebiam, aliás nem a viam. Era apenas a  mão que entregava o objeto de desejo. Olhos tão frios quanto o creme que servia. O chão? Brilhava! Mármore de primeira. Até que foi olhada nos olhos.”Por favor, uma só de creme”... “Obrigada”

O olhar respondeu silencioso. Um contato divino foi restabelecido.

 



TEXTO DE ANDRÉIA CUNHA / SANTOS
Mirante n° 70  – ano 2010
Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva – página n° 80

Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva - ilustração de Igor Villa– página n° 79


Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva – Prosa Poética de Maria Helena Bandeira – página n° 78


Poema de Jaime Bastos



Às vezes esqueço o meu lado animal.
Ele vem e se mistura com meu lado espírito
Em pleno coito e arranca uivos de terras e estrelas.
A lama de vidas me lambuza...
A soma de úmidos risos.


 POEMA DE JAIME BASTOS  / SÃO VICENTE
Mirante n° 65  – ano 2009
Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva – página n° 77

Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva – Haicais de Paulo R. Rodrigues – página n° 76


Poema de Regina Alonso e poema de José Antonio Galati



CORPO E SILHUETA

E em mim mesmo
Medo e espanto
Entendimento do que então fugia?
A silhueta encaixada no meu corpo
Dorso curvado, braços caídos
Pernas imóveis

De mim mesmo eu me distanciava
Desejo de ser outro
Casulo novo
Larva adormecida

Mas do medo e do espanto
Surgem asas
E esvoaço percorrendo o espaço

Lá do alto vejo a minha sombra
E entendo

Retomo o velho corpo

E me desfaço


POEMA DE REGINA ALONSO / SANTOS
Mirante n° 64  – ano 2009
Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva – página n° 75

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PESADELO

No mar sozinho afundei
E vi séculos de desgostos
E as mortes no meu rosto.

Carreguei areias e fiz estátuas
Alheio ao ar e ao vento
Perdi a cor e o movimento.

E em desespero esperei o certo,
Levando a esperança até o fim,
Desequilibrei as proas em mim.

Morri aguardando o infinito
E as ondas os meus olhos salgaram
E as minhas mãos os cegaram



POEMA DE JOSÉ ANTONIO GALATI / SANTOS
Mirante n° 63 – ano 2008
Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva – página n° 74

Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva – Poema de André Azenha – página n° 73


Poema de Diana Sandes e poema de Riso Maria



Tentei a fotografia
à toa pelas
frestas das janelas
portas cada
mas que nada:
o tempo me
dribla eu
caio cansada
desisto do
olhar que sobrava.



POEMA DE DIANA SANDES  / RIO DE JANEIRO
Mirante n° 63  – ano 2008
Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva – página n° 72

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Amor é droga lícita,
não tem perigo amar
só quando não se quer largar
Larga-me
então divirta-me
com um Manolo Blahnik
Acompanhe-me:
Vodca, suco de pitanga,
licor de laranja
e gotas de limão



POEMA DE RISO MARIA / SÃO PAULO
Mirante n° 63 – ano de 2008
Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva – página n° 71

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva – Poema de Kleber Dantas – página n° 70


Poema de Regina Azenha e poema de Barney Days


TUA VOZ

Tua voz é terna, como o cantar dos
pássaros,
é luz onde existir escuridão,
é brisa que acalenta,
é felicidade que faz pulsar um
coração...

Tua voz é doce como o mel,
é melodia que ecoa pelo ar,
é transparente como o azul do céu,
é esperança que me faz sonhar...

Tua voz tem maciez de veludo,
é beleza rara que surge sem se
esperar...
tua voz é um bálsamo para tudo,
tua voz... é sinônimo de paz!...


POEMA DE REGINA AZENHA / SANTOS
Mirante n° 59 – ano 2007
Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva – página n° 69

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NATA DO AMANHECER

O céu já está rosado
É o sinal da aurora
Tu levantas como uma”deusa”
E teus cabelos cacheados
Deitados em teus ombros
Mostram toda a tua beleza
No tom de brancura e pureza
És a mulher da cor da nata
Com a tua silhueta exata
Caminha pela floresta
Deixando os passarinhos a cantar
Tua alvidade não tem idade
E eu pergunto, a que me resta?
Fazer parte desta majestade
Com méritos, a ti pertence
Alteza das flores brancas nascentes!


POEMA DE BARNEY DAYS / SANTOS
Mirante n° 58 – ano de 2007
Revista Mirante n°79 – 30 anos – Retrospectiva – página n° 68